quarta-feira, 4 de julho de 2007

ARTIGO: ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS

* Por Rafael Nogueira da Gama

Embora nossa Constituição Federal não permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os relacionamentos homossexuais são uma realidade em nossa sociedade, assim como o são em praticamente todo o mundo. Ainda que haja certa relutância em reconhecer a legitimidade deste tipo de relação, mesmo assim esta não poderia deixar de ser amparada pelo Estado através do Poder Judiciário, pois, uma vez existente tal relação, dela decorrem direitos e deveres aos seus integrantes.

Nosso ordenamento jurídico define tanto o casamento como a união estável como o vínculo entre homem e mulher, unidos espiritual e materialmente, por livre vontade própria com o objetivo de comunhão para a vida toda e constituição de família. Daí se observa que, tendo o legislador expressamente consignado se tratar de relacionamento ‘entre homem e mulher’, deixou de fora as hipóteses de união entre pessoas de mesmo sexo, ficando assim tais sociedades afetivas carentes de definição legal. Recentes decisões emanadas de nossos Tribunais vêm corrigindo tal omissão, declarando o status ora de união estável ora de sociedade de fato destes relacionamentos, reconhecendo direitos patrimoniais e sucessórios, e até concedendo benefícios previdenciários.

A doutrina vem reconhecendo que a união constituída por homem e mulher através do casamento civil e religioso com intuito de se tornarem parceiros para a vida, dividindo o mesmo teto e com intuito de reproduzirem e perpetuar sua estirpe, dentro de um sentimento romântico de amor e respeito mútuo, não pode ser mais a única definição de família. De fato, nas últimas décadas ocorreram mudanças no comportamento da sociedade, não só em nosso país como no mundo todo no sentido de que as pessoas passaram a ter uma maior liberação sexual, da busca pelo prazer da companhia de outrem, afastada da intenção de vínculo eterno. A mulher tornou-se independente e com direitos semelhantes aos dos homens; proliferaram as famílias monoparentais, em parte por decorrência da instituição do divórcio; as pessoas se casam uma, duas, várias vezes, conforme os relacionamentos florescem, se desenvolvem, perecem e terminam. As uniões entre pessoas do mesmo sexo ganharam notoriedade, não mais sendo concebível hoje em dia esconder a opção sexual por medo de preconceitos.

Decisões surgiram recentemente concedendo a casais formados por pessoas do mesmo sexo o direito de adoção, o que representa significativo avanço social, embora ainda visto com algum preconceito, no mais das vezes decorrente da falta de informação. Muitos questionam se haverá influência do comportamento dos pais na opção sexual da criança adotada, se a mesma será prejudicada psicologicamente pela falta de referência de pais de sexos diferentes, se virá a sofrer qualquer tipo de discriminação de colegas, etc. Tais questões já foram devidamente estudadas através de diversos trabalhos no campo da psicologia, que demonstram que não há indícios de prejuízo à criança adotada por casais homoafetivos. De fato, a Resolução nº 01/99, do Conselho Federal de Psicologia, reconhece que “a homossexualidade não constitui doença, distúrbio nem perversão” e que portanto não pode impedir a adoção.

Igualmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (E.C.A.) nada menciona quanto à sexualidade dos adotantes, ou mesmo a impedimentos eventualmente decorrentes da opção sexual do casal, dispondo estarem aptos a adotar quaisquer pessoas acima dos 21 (vinte e um) anos de idade. O Estatuto estabelece, quanto à adoção, que deve ser buscado o bem-estar e a proteção do melhor interesse do menor, dispondo expressamente que “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”(art. 43).

Apesar da ausência de vedação expressa no E.C.A., a legislação prevê um procedimento judicial bastante rigoroso e exaustivo para a concessão da adoção, seja a casais formados por pessoas de sexos diferentes ou de mesmo sexo. Os candidatos a pais adotivos são submetidos a entrevistas, visitas em casa e em seu local de trabalho, são indagados parentes, vizinhos e colegas sobre a conduta dos mesmos e até traçado um perfil psicológico dos pais. Depois, segue um estágio de convivência com a criança para que ambos (adotantes e adotando) possam verificar se existe ou não o vínculo afetivo, convivência esta que será deferida pelo tempo que for suficiente para se provar que a adoção atende aos requisitos da lei e ao melhor interesse da criança.

O único obste legal nestes casos se encontra no artigo 1.622 do Código Civil, o qual dispõe que “Ninguém poderá ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”. Como o casamento entre pessoas de mesmo sexo é vedado e o reconhecimento de que o tal relacionamento constitui união estável ainda não é unânime (pois o conceito de união estável assim não permite), ainda persiste tal barreira. Este impedimento tem sido afastado pelos julgadores, diante do reconhecimento da legalidade de tais sociedades de fato.

Além do mais, o próprio Código Civil permite a adoção por pessoa homossexual desde que individualmente, o que se revela verdadeiro contra-senso, pois dá condições para que um casal homoafetivo adote uma criança somente em nome de um dos integrantes do relacionamento, mas proíbe a adoção em nome de ambos. Pior, a prática de eventuais ‘manobras’ neste sentido, omitindo a relação para facilitar a adoção por somente um dos integrantes do casal, somente prejudica a própria criança adotada. Isto porque, sendo reconhecida como filha de somente um dos integrantes da relação, não poderá ser titular de direitos decorrentes do parentesco perante o outro integrante, caso o relacionamento termine (patrimoniais, de pensão alimentícia, por exemplo) ou em caso de morte do mesmo (sucessórios).

Considerando a ausência de justificativa plausível de cunho psicológico a vedar a adoção por homossexuais e observando o procedimento cauteloso previsto na lei para que se efetive a adoção, devem ser postos de lado quaisquer tipos de preconceito para que se passe a perceber o quanto importante é a adoção, seja por casais do mesmo ou de diferentes sexos, na realidade em que vivemos. Somos um país com imensas diferenças sociais, no qual todos os anos milhares de crianças são simplesmente abandonadas pelos pais, muitas vezes por falta de condições financeiras, em abrigos que na maioria das vezes não possuem estrutura para formar um cidadão.

A adoção é um ato de amor, no qual um casal traz para dentro de seu lar, para proteger e educar com todo carinho, uma criança que de outro modo poderia ter um futuro incerto, revelando-se também ato de relevante cunho social de que nosso país tanto necessita. Representa uma oportunidade de futuro melhor para milhares de crianças carentes que de outra forma estariam abandonadas à própria sorte, destinadas a um futuro incerto, com grandes chances de se tornarem adultos despreparados profissional e emocionalmente, quando não marginalizados.

É preciso, antes de criticar, lembrar que muitas pessoas que vivem relacionamentos homoafetivos são extremamente bem-sucedidas, pessoas educadas, cultas e com situação econômica confortável, se revelando pais ideais para a tarefa árdua de educar uma criança, para que a mesma se torne um adulto preparado, culto e com valores realmente importantes como honestidade e integridade. Nada mais justo do que conceder àqueles que possuem tais condições o direito de serem pais e de realizarem o projeto familiar que escolheram, independentemente de opção sexual; nada mais justo para com os pais e para com as crianças, que precisam de uma família também.

* Rafael Nogueira da Gama é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, especializado em Direito Processual Civil e Direito do Seguro. O advogado é membro do Instituto de Direito de Família e atua em Curitiba no escritório Geraldo Nogueira da Gama Advocacia e Consultoria.

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