quarta-feira, 20 de junho de 2007

ARTIGO DO OSCAR: QUAIS SÃO OS FILHOS QUE QUEREMOS ADOTAR?

Minha luta é por uma "sociedade democrática livre onde todas as pessoas de todas as raças vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais".
Nelson Mandela


Por Oscar Henrique Cardoso (*)

O que os números apontam a respeito do perfil do adotado no Brasil revela uma realidade escondida em nosso sub-inconsciente. Algo que tentamos esconder, defendendo uma idéia de mestiçagem, de democracia racial que apenas fica na cútis. Não adentra em nossas famílias e não faz parte da composição biológica de alguns dos nossos sobrenomes. Falar em adoção sensibiliza. O gesto lindo dá lugar a exposição do sentimental, e nós vamos então demonstrar indignação por culpar a já tão culpada classe política por mais este fardo, ser a responsável pelas causas do abandono de crianças nas ruas.

Responsabilidades à parte, também temos a nossa responsabilidade como sociedade civil e como brasileiros, frutos de um país miscigenado onde o cruzamento de raças nos deu uma perfeição sem igual. Uma perfeição em sermos fortes para superar dificuldades e ainda sorrir para a vida. Mas o que seria também sorrir para a vida? Também seria tratarmos com maior seriedade e sinceridade sobre o tema racismo. O racismo que é além do institucional, mas sim o racismo mental que está incutido em nós e que nos faz ver crianças mestiças, negras e indígenas (mesmo que em pouca escala no caso das indígenas) crescerem em instituições sem uma palavra, tampouco sem nenhum apoio e acolhida desta mesma sociedade latina que se declara moderna e cosmopolita.
Os números apontam que poucas foram as mudanças e a abertura de muitos futuros adotantes a receber em seus lares uma criança parda ou negra. Reportagem publicada pelo Jornal O Globo, em agosto de 2002 já confirmava que a tendência de tornar a nação brasileira cada vez mais com feições européias ainda permeava a mente de futuros pais e mães. Foi através de um levantamento feito pelo juiz da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, Siro Darlan, que ajudou a embasar a constatação que já fora feita por diversos especialistas em adoção no país: de 122 candidatos que tinha registrado à época para o processo de adoção, 44 deles exigiram que os futuros filhos fossem de cor branca.

Filhos de cor branca, ao que parecem, acabam levando a muitos candidatos a ter uma tranqüilidade social. Ou seja, tendo em casa uma criança de cor branca, e não mestiça, evitaria um questionamento e também um olhar de pena e caridade por parte de amigos, colegas de trabalho e sociedade em geral. A aceitação e o olhar branco em nós permanece ainda como resquício que trazemos de nosso tempo colonial, onde o barroco alvo das imagens católicas trazidas pelos jesuítas nos fazem ainda interligar que o céu e que a beleza é alva, pura, branca.

Mais preocupados com o alvo da cor da pele também revelam outras estatísticas. Como a que fora produzida pela Universidade Federal do Paraná, onde comprova que menos de 5,5% das crianças negras são adotadas. Se a idade for maior de três anos de idade e menino, aí mesmo é que os números caem. Caem porque existe em nós o medo: o medo que transcende a cor da pele, o medo da rejeição, o medo de não arriscar investir e construir em um futuro para estas crianças. O medo porque ouvimos dos mais antigos que “pau que nasce torto não se indireita”. Afirmação esta que ressalta, neste caso, preconceito e discriminação para com crianças que não cometeram pecado algum. Pelo contrário, nasceram e merecem ser felizes, construindo relações de amor e segurança familiar e com o coletivo.

Em um país que tem mais de 80 milhões de afro-descendentes, crianças pardas, ou as famosas “misturadas” como chamamos, também acabam padecendo do abandono em instituições que ainda funcionam como depósitos de pessoas.

No Brasil pluriracial, 23,8% de crianças pardas, conforme aponta a pesquisa da Federal do Paraná, ganham a chance de ter uma família. Talvez estas sejam adotadas por casais mais idosos, com maior poder aquisitivo, e que não se importam tanto com a cor da pele. Fazem sim da adoção um ato de benemerência.

A dura face do racismo se apresenta também de uma forma branda, amena, sem discursos agressivos, mas simplesmente composto por ações práticas. Práticas em muitas vezes já combinar uma adoção pronta em uma maternidade, procurando saber se a criança que chegará ao mundo será um bebê, do sexo feminino e de cor branca. Se o futuro bebê chegar ao mundo com estas características, este será felizardo em crescer em um lar da classe média brasileira. Se for ao contrário, já deixará o hospital diretamente para um abrigo e lá contará com a sorte. Sorte de ganhar um futuro pai ou uma futura mãe brasileira? Só com muita sorte mesmo. Primeiro porque precisa realmente derrubar duas barreiras: a barreira momentânea de um possível arrependimento da genitora, a qual pode recorrer na Justiça pelo direito de criar seu filho, confirmando ter sido vítima de depressão pós-parto ou outro mal qualquer e derrubar a barreira do preconceito social. Este então é aquele que está intrínseco e escondido dentro de nós.
É o mesmo que nos faz preparar respostas mais ou menos prontas em nossa cabeça. Respostas prováveis a alguns prováveis questionamentos sociais como: que lindo, que gesto de amor vocês fizeram? Pegaram um “negrinho para criar... olha, é como se fosse da família. E mais, irá carregar a estigma além da cor da pele. O dever de ser bom, grato e de jamais fazer algum tipo de malcriação. Se apresentar conduta contrária ao padrão alvo e politicamente educado, está fadado à rejeição. Mais uma, além do útero de uma genitora. A rejeição social.

Adotar é transpor barreiras, é lutar para derrubar preconceitos. Em especial se a adoção partir para a forma tardia, onde uma criança maior de dois, três anos de vida assim verá o direito sagrado e legal de crescer em um ambiente familiar – sanguíneo ou não, ser cumprido e respeitado, a ação de ofertar amor e cidadania será plenamente exercida. Derrubar preconceitos passa sim por derrubar estatísticas. Reverter números que ainda comprovam o anseio de se constituir o molde de um filho ideal, que passa pela cor alva da pele, do sexo feminino e com o desejo perfeito de ser o filho amoroso, responsável, cumpridor de toda e qualquer ordem sem pestanejar ou questionar.

Adotar passa também por discutir o tema dentro do Estado. Passa por reinvindicar, construir políticas públicas que facilitem a adoção para famílias brasileiras, que promova campanhas e programas educativos sobre o tema, que se fale e discuta em sociedade a adoção de crianças negras, pardas, adoção como um novo modelo de constituição familiar, adoção de crianças portadoras de necessidades especiais, soropositivas do vírus HIV, adoção por casais homossexuais. É momento de trabalharmos juntos, de Norte a Sul, por uma real constituição de uma legislação que facilite não só o direito de adotar, mas que também implante ações para assegurar convivência familiar (ou não) entre órfãos e suas famílias de origem. As mesmas iniciativas devem sim erradicar o abandono, promovendo a auto-estima das crianças que vivem em abrigos e suas famílias. De mãos dadas, com o Estado, vamos construir caminhos para a cura, a cura de uma ferida social que sangra. Uma ferida inflamada, porque os cerca de 80 mil menores que vivem em instituições brasileiras irão um dia cobrar da sociedade o porquê da mesma virar as costas para os muros que as separam do restante de nossas comunidades.

Esse mesmo grupo social irá cobrar exclusão. Reação e reparação. Reparação por anos de abandono, onde a culpa vai além de uma questão biológica. Vai de um círculo. Um círculo de dor, miséria, violência e abandono. Pois quem vem do abandono irá repetir o ciclo vicioso se nada for feito para que pare, sinta e observe uma saída para manter o elo familiar devidamente vivido.

O Estado também é convidado a apoiar a todos os candidatos, pais e mães adotivos. É convidado a ofertar apoio psicológico junto às Comarcas da Infância e da Juventude, para apoiar, gratuitamente, pais e filhos em processo de construção. Porque as relações familiares a partir de uma adoção, na prática, se reconstroem, tanto entre marido, esposa e filhos.

O Estado também é convidado a estreitar as suas relações com a mídia, para juntas falar e promover o amplo debate sobre o tema Adoção nos meios de comunicação. Hoje a abordagem se dá de forma satisfatória, mas pode ocupar horários nobres. Pode a adoção em nosso país ganhar uma contemporaneidade e esta sim ser modelo para toda uma América Latina que engatinha ainda na sua formação social, política e econômica. Isso mesmo, porque falar em adoção também é falar em economia, em reduzir os números do abandono, cifras que irão engrossar a indústria do crime, principalmente se nada fizermos para os jovens negros, negras e mestiços os quais deixa os abrigos ao completar a maior idade. A violência e a desagregação familiar também ajudam a reforçar o racismo. Porque vemos como imagem de miséria e desagregação, famílias negras. É a primeira imagem que nos vem à mente, mesmo que também a pobreza atinja a brancos, índios, orientais e assim por diante.

Fica percebível que o texto começa falando em racismo, em números de discriminação e termina no papel do Estado. Falar de racismo e adoção, perguntando quais os filhos queremos adotar passa sim por levar a todos tais visões, tais constatações. Racismo é além de um problema estético: é social. Adoção é mais do que o resultado de um problema apenas governamental: também é social.

Diante, somos então mais uma vez convocados a responder, primeiramente a nós mesmos, “quais são os filhos que queremos adotar?”.


"Um dia meus filhos viverão numa nação onde não sejam julgados pela cor de sua pela, mas pelo conteúdo do seu caráter".
Martin Luther King

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